A MESA DO SENADO, devidamente representada no Congresso Nacional pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Congresso Nacional, Sr. Eunício Oliveira, vem por meio de sua advogada infra-assinada, conforme procuração em anexo, propor:
ACÃO DIRETA DE INCOSTITUCIONALIDADE
Com fundamento no Artigo 102,inciso I, alínea a, da CFRB/88 e no Artigo 2º, inciso II, da Lei nº 9868/99, em face teor da Lei nº 6802/80, conforme especificará ao longo desta petição, nos termos e motivos que a seguir passa a expor.
1- DA LEGITIMIDADE ATIVA
Consoante o Art. 103 da Constituição Federal, com redação dada pela EC nº 45/2004, podem propor a ação direta de inconstitucionalidade: (I) o Presidente da República; (II) a Mesa do Senado Federal; (III) a Mesa da Câmara dos Deputados; (IV) a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (V) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (VI) o Procurador-Geral da República; (VII) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; (VIII) partido político com representação no Congresso Nacional; (IX) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Ressalta-se, ainda, que aos legitimados ditos “universais” não é requerido demonstrar qualquer relação institucional com a matéria impugnada, por meio de requisito de admissibilidade, “pois o interesse genérico em preservar a supremacia da Constituição decorre das suas atribuições institucionais.”.
Assim, são legitimados universais: o Presidente da República, as Mesas do Senado Federal e Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, com fundamento nos incisos I, II, III, VI, VII e VIII do Art. 103 da Constituição Federal.
2- DA LEGITIMIDADE PASSIVA
A legitimação passiva, na ação direta de inconstitucionalidade, recai sobre o órgão ou autoridade responsável pela lei ou ato normativo objeto da ação, aos quais caberá prestar informações ao relator do processo (Art. 6º da Lei nº 9.868/99).
Desta forma, o Presidente da República, que editou a norma ora mencionada para impugnação, é o indicado no polo passivo da referida ação de inconstitucionalidade.
1 - DOS FATOS
No dia 30 de junho de 1980, o Excelentíssimo Senhor Ex Presidente João Batista de Oliveira Figueiredo, sancionou a lei nº 6802/80 que declara:
“Art. 1º - É declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil.”.
Precisamos, antes de qualquer análise sobre a inconstitucionalidade de tal lei, voltarmos em nosso passado para compreendermos a relação entre Estado e Igreja Católica Apostólica Romana, a qual chamaremos apenas de Igreja Católica, no Brasil. Para tanto, retrocedamos ao início de nossa História, quando os portugueses iniciaram a colonização de nosso país.
Um dos principais motivos das grandes navegações marítimas Europeias, foi a necessidade de difusão do Cristianismo no mundo. Nesse sentido, Portugal e Espanha, quando da povoação de suas respectivas colônias, trouxeram das terras americanas, ordens e congregações religiosas, que assumiram a catequização dos nativos e a educação nas escolas.
O controle da Igreja pelo Estado nessa época, se dava através do padroado. O padroado foi um instrumento instituído através de negociações entre a Santa Sé, e os Reinos Ibéricos que delegavam aos monarcas católicos a administração e a organização da Igreja Católica em suas colônias. Esse instrumento permitia aos reis controlar as finanças da Igreja, e nomear as autoridades eclesiásticas, e através dessa forma, eles se tornavam funcionários públicos.
Tal poder concedido aos reis era retribuído a Igreja Católica com o impedimento da entrada na colônia de outras religiões: a religião Católica torna-se a religião oficial do Brasil. Com esse cenário traçado, percebe-se a profunda influência do catolicismo na formação da identidade social, cultural e política de nosso país.
Essa situação de dependência permeou todo o período colonial. Uma leve brisa de liberdade religiosa soprou sobre essas terras apenas em 1808, com a chegada da família real portuguesa. Nessa época, a relação econômica entre a Inglaterra protestante, e Portugal católica, se formalizou com o Tratado de Comércio e Navegação de 1810, que rezava, em seu artigo 12, que os britânicos residentes no Brasil, não seriam incomodados ao realizarem seus cultos em casa, ou em suas igrejas construídas para esse fim, e sem deixar transparecer características exteriores que a demarcassem como tal, e desde que não buscassem fazer convertidos.
Com a proclamação da Independência do Brasil em 1822, não houveram avanços significativos na busca da liberdade religiosa. A Constituição Imperial de 1824, manteve a religião Católica como religião oficial, e garantiu sua perpetuação como tal, permitindo apenas uma leve tolerância religiosa, à custa do cerceamento da cidadania dos não católicos:
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a religião do Imperio. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo.
A Proclamação da República em 1889, foi o momento histórico em que realmente houve uma alteração significativa na relação entre Estado e Igreja Católica. O decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890 redigido por Rui Barbosa ,sob a égide desse novo modelo político, iniciou o processo de secularização do Estado, proibindo a intervenção da autoridade estatal em assuntos religiosos, instituindo a liberdade de cultos, extinguindo o padroado e dando outras providências para tornar o Estado laico.
A primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, sob a influência do positivismo e do racionalismo que despontavam à época, valorizavam a razão e a ciência, em contraponto a fé cega, confirmou a separação total entre Estado e Igreja, afirmando a laicidade do Estado, e a liberdade religiosa, conforme seu artigo 11º:
Art. 11: É vedado aos Estados, como a União:
[...]
2ª) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos.
Esse ânimo de laicização do Estado, é confirmado pela omissão de “Deus” na Carta de 1891. Além disso, houve também, a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos. Fatos estes, que confirmam que tal Carta teve por objetivo, o apartamento absoluto entre Estado e religião.
A Constituição de 1934 manteve o Estado laico preconizado pela Carta de 1891, porém retrocedeu no que tangia a liberdade de crença, pois subordinou tal condição, ao atendimento da ordem pública e dos bons costumes, o que abria uma interpretação jurídica capaz de sufocar tal faculdade.
Dentre as alterações trazidas pela Carta de 1934, podemos citar o efeito do casamento religioso como civil, a existência de cemitérios particulares administrados por confissões religiosas, a assistência religiosa, desde que solicitada, e o estabelecimento do ensino religioso nas escolas públicas com frequência facultativa, e ministrado de acordo com a crença religiosa do aluno, o que obviamente não se mostrou exequível.
A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, retomou o espírito da Carta de 1891 no que se refere ao laicismo. Assim como esta, aquela também não se refere a Deus em seu preâmbulo. Não tratou do casamento, fosse ele civil ou religioso, e além disso não mencionou a assistência religiosa.No entanto, a referida norma manteve a liberdade de expressão religiosa, condicionada a ordem e aos bons costumes, não tutelando tal liberdade em todos os seus aspectos.
A Constituição de 1946, promulgada por uma assembleia Constituinte, foi produto da redemocratização do país. Tanto o Estado laico, como a liberdade de crenças e cultos religiosos foram mantidos, embora ainda condicionados á manutenção da ordem e aos bons costumes em suas manifestações. Foram retomados da Carta de 1934, o efeito do casamento religioso como civil, a assistência religiosa quando solicitada, a manutenção de cemitérios particulares, e a ministração do ensino religioso como disciplina das escolas oficiais. Como inovação no relacionamento entre Estado e Igreja, a Carta de 1946, previu a imunidade tributária para templos de qualquer culto, o que pode ser visto como um incentivo, dentro da laicidade do Estado, a manifestação religiosa dos cidadãos.
A Constituição de 1967, redigida sob a ótica do regime militar que ascendeu ao poder em 1964, manteve o direcionamento da carta anterior, no que tangia a liberdade religiosa, inclusive no que se referia a sua manifestação somente em observância à ordem e aos bons costumes. Foi mantida também a imunidade tributária, conquista dos vários cultos religiosos. Em seu preâmbulo, a proteção de Deus foi novamente invocada, mas mantido o laicismo em seu conteúdo.
E por fim, a Constituição de 1988, vigente até a atualidade, seguiu a tendência mundial de fortalecimento dos direitos fundamentais, sendo conhecida como a Constituição Cidadã. Nesse sentido, em seu artigo 5º, reconhece o direito à liberdade de religião, como um direito fundamental de espectro individual.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
A garantia de liberdade, cujo um dos espectros é a liberdade de crença e culto, é, um direito recentemente adquirido pela humanidade como um todo. Se voltarmos para um passado recente, há apenas 130 anos atrás, ainda protagonizávamos o flagelo da escravidão que assolava a nossa sociedade. Tal fato reforça como é recente essa garantia, e como foi custoso conquistá-la de forma plena.
E para que isso chegasse a acontecer, a construção de um Estado laico foi fundamental. Como falar em liberdade plena em um Estado que favorecesse apenas uma religião? E mesmo não favorecendo a religião predominante, como se sentir livre em um Estado que, de forma velada, se mostra mais simpático a uma religião específica, em detrimento das demais?
Nesse aspecto, a Carta de 1988 assegura em seu artigo 19:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
O caminho constitucional para consolidação de um Estado laico, e por conseguinte, da garantia do direito à liberdade, foi longo e conturbado, marcado por avanços e retrocessos, governos ditatoriais, revoluções, até sua inscrição nas páginas de nossa Constituição Cidadã, fruto do renascer de nossa jovem, e por isso frágil, Democracia.
Não foi o governo que proclamou Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil. Foi a Igreja Católica que ao fazê-lo estava atendendo a devoção da grande maioria do povo brasileiro,entretanto o governo oficialmente não endossou tal ato, como não lhe competia endossá-lo. Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi proclamada Rainha do Brasil e sua Padroeira principal em 16 de julho de 1930, por decreto do Papa Pio XI. A imagem já havia sido coroada anteriormente, em nome do Papa Pio X, por decreto da Santa Sé, em 1904.
Pela Lei nº 6802, de 30 de junho de 1980, foi decretado oficialmente feriado o dia 12 de outubro, dedicando-se este dia, a devoção a uma santa especifícamente católica. Também nesta lei, a República Federativa do Brasil, reconhece oficialmente Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil. Assim sendo, o governo brasileiro ofereceu, concedeu, dispôs, um feriado (12 de outubro), para que os adeptos desta religião, pudessem externar sua piedade á Nossa Senhora Aparecida. O governo praticando e utilizando-se do conceito de democracia, nada mais fez do que corresponder a um justo anseio de grande maioria da população brasileira.
Não obstante, cabe agora ao governo, atender a parte da população que anseia pela igualdade religiosa, onde o Estado sendo laico, deve manter sua neutralidade diante da religião. Um feriado exclusivo para uma entidade religiosa específica, vai totalmente contra a laicidade do Estado.
3 - DA INCOSTITUCIONALIDADE DA LEI 6.802/80
O Estado laico não é um Estado ateu. O Estado laico é aquele em que as instituições políticas se mantém apartadas das instituições religiosas, ambas não sofrendo ou praticando ingerências em assuntos que não lhes compete. Entretanto, não é um Estado em que qualquer menção ou manifestação religiosa deva ser combatida.
No preâmbulo de nossa Constituição vigente, a proteção de Deus é invocada. Nada mais natural, visto ser a Constituição de um povo, que desde sua origem, tem como traço uma profunda religiosidade.
Entretanto, essa religiosidade se manifesta de forma multíplice, o que é de se esperar em um país tão vasto e de origens tão diversas. Embora a maioria de nossa população professasse a fé católica décadas atrás, tal cenário vem se alterando ao longo dos anos, segundo pesquisa dos centros de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV): segundo a pesquisa, os adeptos do catolicismo eram de 99,72% da população em 1872, pouco antes da proclamação da República. Em 1980, época da promulgação da lei 6802, essa proporção era de 88,96%, índice bastante elevado. E em 2009, esse índice era de apenas 68,43%.
Diante desse atual cenário de composição religiosa de nosso país, e de sua busca pela igualdade em termos gerais, é imprescindível que questionemos a constitucionalidade da lei objeto dessa ação, para o bem de nossa sociedade cada vez mais heterogênea em seu exercício de liberdade religiosa. A lei 6802/80, que cria o feriado de 12 de outubro, tem como texto: “culto público e oficial à Nossa Senhora Aparecida.” Ora, nesse sentido fere frontalmente o Artigo 19, I, da CF/88, que declara em sua redação:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Não se pode ter um culto oficial, mormente específico de uma determinada religião, em um Estado laico, o que torna o texto da lei 6802/80 notoriamente inconstitucional, por não ter sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Em que pese a grande influência religiosa e cultural da tradição católica apostólica romana em nossa sociedade desde a ocupação do Brasil pelos portugueses, essa dinâmica vem mudando ao longo do tempo, mais acentuadamente nos últimos anos. Tal alteração justifica trazermos novamente ao debate a constitucionalidade da Lei 6802/80, já que ao longo deste contexto histórico foram arquivados três projetos de lei que revogavam a lei apresentada.
É conveniente frisar, que a colaboração de interesse público previsto na Carta de 1988, não se aplica a referida lei. A colaboração de interesse público se refere a cooperação de entidades religiosas na manutenção da ordem pública, na instrução das pessoas, na realização de campanhas sociais, enfim, em tudo aquilo que visa o bem comum social.
A declaração de inconstitucionalidade na ação direta produz efeito erga omnes (para todos) e ex nunc (desde agora).
Conforme a lei nº 9.868 de 1999, que regulamenta o processo jurídico da ação direta de inconstitucionalidade – ADIn e da ação direta de constitucionalidade – ADC, trouxe o seguinte dispositivo:
Art.27: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu transito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Como se vê, o direito Positivo passou a permitir que o Supremo Tribunal Federal, em situações excepcionais e mediante maioria qualificada de dois terços, manipule os efeitos de sua sentença proferida em ADIn e ADC.
Caso o STF proclame, em sede de ADIn ou de ADC, a inconstitucionalidade de uma lei e entenda que o reconhecimento de eficácia retroativa (ex tunc) à sua decisão possa comprometer a segurança jurídica ou o interesse social, poderá, desde que o faça expressamente, e por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que fixar.
5 - DOS PEDIDOS
Diante de uma análise genérica, é evidenciado que não se está buscando uma radicalidade do laicismo, onde o Estado deve abster-se completamente de envolvimentos com a religião, mas sim, um Estado democrático consagrado pela Constituição, onde a premissa é busca pela laicidade. Premissa essa que não está sendo desenvolvida com perfeição, concedendo a uma denominação religiosa privilégios, ferindo diretamente a constituição, deixando a desejar a eficácia do poder judiciário em meio a desigualdade mantida entre as classes religiosas. Diante destas constatações a MESA DO SENADO em face da lei 9868/99 em seu Art. 1º, perante a relevância da matéria constitucional demonstrada, mediante a contrariedade da Lei nº 6802/80, em virtude dos Artigos 19, I, 5º, VI e VIII, todos da CF/88, requer:
4.1 – Seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Federal nº: 6.802/80.
Pede, ainda:
4.2 - A intimação da autoridade, para que se manifeste sobre o mérito da presente ação, no prazo legal;
4.3 - A intimação do Advogado-Geral da União, para que se manifeste sobre o mérito da presente ação, no prazo legal;
4.4 - A intimação do Procurador-Geral da União, para emitir seu parecer no prazo legal;
Nestes termos,
Pede deferimento.
Belo Horizonte, 04 de Abril de 2018.
Jane Medeiros
OAB-MG XXX